PÁGINAS

domingo, 23 de novembro de 2014

Poemas de Graça Pires










Convido-os a conhecer a poética da portuguesa Graça Pires,
 que mantém seu blog Ortografia do olhar, desde o ano de 2006.
 Graça Pires é autora de vários livros, onde seu belo trabalho 
vem se consolidando no cenário poético contemporâneo.






Eu te baptizo em nome do mar,

disse minha mãe com barcos na voz.

E as ondas enlearam nas águas o meu nome,

abrindo nas fendas do corpo um impulso

salgado que me brandiu o sangue.

Sei agora que há âncoras afogadas

nos meus olhos: nítido eco de todas as demandas.


Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014





Volta de novo, idade

da inocência que foi minha.

Traz-me nas tranças

a cristalina alegria dos dias

em que no fundo do coração

nenhum nome me doía.


Graça Pires
De Caderno de significados, 2013





Por haver quedas de água nos seus olhos,

é que é possível intuir, no sulco do poema,

a livre aprendizagem da vida.

Incessante, a sua voz se eleva em rotação de luz

e rompe o círculo das sombras

tão próximo dos lábios

que mais parece a íntima alegria de cantar.

Entre os seus dedos uma ave palpita,

perturbada, como se urdisse em seu voo

o perfil azul-claro das manhãs.

O poeta tem sonhos de barro

enrolados na garganta : o lugar

onde os deuses sopram

a pulsação das palavras

e refazem o sentido dos dias.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996



Coragem


Escutar o rumor da morte

na rotina dos dias,

no sangue das palavras,

na dor, na perda, no tédio.

E renascer a toda a hora

com a inocente respiração da vida.

Serenamente.


Graça Pires

De Caderno de significados, 2013



segunda-feira, 7 de julho de 2014

"somos metáfora para a queda" - 2 poemas de Gustavo Petter



O arcanjo beija
um pássaro ferido.


Olhos brilham
a terrível ternura.
Artelhos tramam-se.
Acolhem.


Meu pequenino,
nossos sonhos
de cera
são signos
para poetas
malditos.


Meu pequenino,
somos metáfora
para a queda.



Brian Day

I

Estendem-se as pálpebras
sobre o sono das órbitas.

Não será sudário
o lençol ordinário
que simbolizou teu óbito.

O lençol cobrirá o leito
de outro enfermo,
o ciclo:
enfermaria lavanderia
enfermaria.

Dedos estendem as pálpebras
sobre as pupilas fixas
do morto.

Eu, menino que simulava
suicídios, sei
ser egoísmo desejar
a imortalidade
mesmo
a quem se ama
muito.

O poeta sente a música
das palavras
sob as pálpebras
cerradas.

II

Lástima
is
last
poem
que traduziria
a extrema experiência
murir
con el cuerpo.

Houvesse tempo
diriam ser
delirium tremens

Foda-se o paciente
ser poeta.
Plantonistas leem o prontuário:
histórico psiquiátrico,
miligramas prescritas
de medicamentos,
número do leito.
Foda-se o paciente
ser Leopoldo María Panero.

 


Gustavo Petter publica em: Agradável Degradado.

domingo, 15 de junho de 2014

"pisamos a terra calcinada e nossos ossos"



água puída
 
somos cinco sob a árvore. alguns passantes vêem um sobrado, outros um forte, mas se trata de uma árvore secular. há ernesto, que nos atravessa com seu pavor no instante da partida, enquanto nós estamos cercados pela espera de sua volta. a contar por nosso calendário, ernesto só viverá novamente quando se cumprir mais uma quina de anos. a esse tempo, pisamos a terra calcinada e nossos ossos, junto às sementes, formam um nó cego no corpo. nada pode faltar a ernesto, como a nenhum filho. não podemos revelar que achamos esse princípio de igualdade injusto. nossa mãe, com hera nas mãos, sussurra que injustiça é a privação de ernesto. privação de nos ver sem ser visto, de nos tocar sem ser tocado, de ser o único a ouvir a própria voz ecoar terra afora chamando por nós. quanto oceano, mãe, ainda nos vestirá até o pescoço? nossa mãe diz, na hora da prece, que, por nossos passos, ernesto sentirá que há chão; por nossos olhos, verá o longe — para que ele não seja, noite e dia, o dia afogado em seus pés que não viram o rio sem fundo. ernesto é a última criança que correu para o rio. a nós restaram a água puída e o seu aquário.


Imagem: Ben Zank

00:00h

descobri que sei guardar segredo.
a água inunda os batimentos cardíacos.
o olhar se esvai em cobre, potássio, cobalto
— diminuto calendário das dores que, na descida, não é tempo,
é brisa de água.
a crosta de tudo que desdiz meu nome me reveste com um corpo
mais sonoro: eco de nenhum cão.
sorvo-me — farpas, vidros, o pântano da primavera em meus pulmões secos.

sei guardar segredos que matam.


*

Textos de Luciana Marinho. Leia mais em seu blog Máquina Lírica.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Os primeiros brotos de Abel Andrade



1. Conversando comigo

São de todas as cores, de todas as formas, são todas irregulares, mas buscam sempre a mesma coisa, buscam não sei o que, mas quero crer, que busquem a alegria do viver. Se pergunto quem são, me respondem, somos belas, não saberemos até quando, pois hoje somos amarelas, rosas, brancas e douradas, amanha poderemos está todas queimadas e sem função, apenas seres esturricados pela falta de consideração e de amor.

Não somos apenas grandes, somos pequenas, de todas as formas, tem aquelas que desabrocham flores exalando seu perfume, mas também a aquelas que apenas a beleza de suas folhas dá sentido aos pobres corações sofredores.

Somos plantas, arvores relvas selvagens, mas queremos apenas viver essa aurora de louvor. Viver não é dádiva, e sim compromisso com o Criador.



2. Um dia

Já fui criança, um dia sonhador, hoje sou um jovem sofredor que sempre sonhou com a vida, em um dia ser vencedor.

Vencendo na vida como um bom doutor, mas a vida não dar saída para que sejamos grande sonhador.

Observo o verdadeiro sonho, vejo apenas as pétalas das flores que vivem a suspirar de amor.

Amor a um passado que vive perdido, nas ruínas de uma vida prostituída.


3. Por que

Porque falar o que sou, se na verdade não sei o que quero e onde vou ser príncipe ou rei, não sei.

Rei nas ruínas da escuridão como a brisa do mar que cai numa tarde de verão trazendo uma dor de amargar. Amarga como fel, sem saber o que fazer, até mesmos se serei um amigo fiel.

Como uma pedra preciosa que brilha no jardim, trazendo alegria e mais amor aos amantes que vivem em baixo do pé de jasmim.




Abel Andrade é religioso, não no sentido institucional da palavra, mas no sentido existencial que ela possui. Ele me perguntava se os seus textos tem qualidade para serem publicadas, confesso não saber fazer essa avaliação, mas o que me toca em seus escritos é essa imersão natureza e no cotidiano, uma tentativa de buscar o sagrado nas manifestações dele. Há também as inquietações de um remador frente a um mar muitos vezes cheios de tempestade, uma tentativa de falar de si mesmo, através da simplicidade e do olhar infantil. Seus textos buscam o encantamento perdido por quem descobriu que a verdadeira mística não é a da instituição, mas a da vida.