PÁGINAS

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Poema de Ney Ferraz Paiva



"o dia todo com os olhos voltados pra fronteira" 


marinheiro de segunda classe
sem rosto nem pertences
sempre mudando pra mais longe
efeitos de introversão
filiado ao sindicato dos marítimos
ainda que por lá já não militem marujos tão bons
billy budd/ paul bowles/ basil bunting
agonizando sobre a praia
digo oh deuses guardiões dos mares
quero mais tempo pra ler/escrever
flutuar no éter das distâncias
algures & aqui nesta deriva
palavras arremessando entrando
ou és tu que impeles/solidão?
resgatam antigas pegadas
incontáveis tropeços
furiosa música do dia
estranho lugar da escrita
tentar fingir pra si mesmo
um caminho de fuga
depois da brumosa chuva
a cidade se contempla pelo avesso
um caos de detritos
ruína de navio ao largo
um tipo de luto
cidade oculta na sucessão de ruas
corredores fechadas janelas
estreitos desfiladeiros
não existe mais
nada me sobrou
pelos becos corriam cavalos
terrenos baldios
cemitérios de cães carros 
velhos ossos até avião tinha
construíram aeroporto perto dali
que às vezes se foge
nomadismo & vagabundagem
tempo em que não existia rua avenida
dizia-se: “estrada velha do aeroporto”
torpor de hélices arremetendo
nasci-cresci ali agora mesmo
tudo leva o tempo de um segredo
passou-passei inerte sobre escombros
esmagado perdido acuado
à espera-ébria do hipotético barco
evito ver-lhe um retrato
esquivo-me de seus enigmas
eu era essa cidade derruída
na avenida agora descarrega-se
o delírio que não teria ousado
desenfreadas procissões
pastoreiam pés descalços
o pecado a que sempre se volta
engastados numa corda
sem saúde nem saída
estrangeiro agonizo sobre a praia
oh deuses guardiões dos mares
distâncias engolem/regurgitam
flamejam o confim dos exílios
escritor de leitor & lugar algum
todos passam surdos/mudos por mim
a coisa mais estranha é o silêncio
ou certa vez tua mão na estante
à procura de um livro meu
“não é fácil achar”
um livro entre outros
sem início & fim solenes
dedos percorriam dorsos crinas
cabelos brancos-açucarados
bailavam saiam de mim            
puxavas manobravas
raízes de água fluente
criadas por mim mesmo
começavam a cobrir tudo
o silêncio-uivo do poema

*


Ney Ferraz Paiva nasceu em Belém (Pará). Escreveu os livros: "não era suicídio sobre a relva" (2000), "nave do nada" (2004), "val-de-cães" (2008) e "arrastar um landau debaixo d'água" (2012). Mantém o blog Hospício Moinho dos Ventos.

3 comentários:

Jayme Ferreira Bueno disse...

É bom ler um poema diferente e criativo como este do paraense Ney Ferras Paiva. Parabéns, pela postagem.
Jayme

Jayme Ferreira Bueno disse...

Nome próprio é algo sagrado. Portanto, retifico: Ney Ferraz Paiva.
Jayme

Tania Anjos disse...

Em seu blog, o poeta diz:

"à procura de uma linguagem inabitável louca desgarrada é ela que traz água aos moinhos"

E é nesta linguagem que mergulhamos ao lermos este incrível poema.



Obrigada, Lara! Sigo o blog do autor há um tempo e tudo por lá é muito, muito bom.