Com que pedaço de memória é possível
dizer tudo?
Posso tentar outra vez.
Mas a palavra hoje não me limita.
Estou em tudo e em ninguém.
Falhei. Falhei quando, juntas,
atravessamos a ilusão dos corpos,
na unidade quase possível.
O ponto máximo de realidade,
embora os sonhos queiram dizer algo:
que há um lugar aceso para o tempo
que não existe,
senão um lugar que nos pertence
na dimensão sombreada
da memória -
o que ama.
E o que ama tem a carne
dos avessos.
Não consigo tocar,
mais uma vez,
a carne da minha linguagem.
Tento; os nomes chovem
sobre meu corpo
ermo.
A palavra, manto de água,
despe serventias.
Há sempre o lado
limpo do leito
que desfere o nome
vazio.
Como um último golpe,
dois adolescentes,
o toque desesperado.
As mãos que amam,
as mãos que nunca tocaremos.
Que esbofetearam palavras de ordem
quando não fomos;
consumidos pelos anos,
atravessando o fundo.
O tempo, não mais o medo.
Com que pedaço de memória
é possível dizer tudo?
Ultrapasso a linha de chegada.
Ano após ano, de um desejo
que vai afinando como a pele.
Mas, em cada coisa escrevo
o amor: seu nome altero,
sua marca indelével,
que eu risco
neste branco
de pele.
Imagem: Sebastian Toth |
Há uma nova contagem do tempo. A cada três e meio antigos minutos, a música recomeça. Soa como se me explicasse: o indivisível, o inimitável. Para que eu não entenda. O sol da primeira tarde. As próximas horas, cortinas a tudo. Esta solidão de pálpebras, sombras que refletem cercanias do mundo. Esperas: esferas. Tento ser o mais ágil, nos centésimos em que avanço do silêncio ao som. O fim quase inaudível. Como sempre, perco para os meus braços. Asas do incontável atraso do agora, na soma dos movimentos, das incompreensões, logo trarão o fim deste ato. Pode ser que o cansaço vença, ainda antes que o tempo se renda aos atrasos. E é só a música que tenho por parâmetro. Apenas este toque, dedos presumidos, intangível impregnado de urgências, que cobre há meia hora uma nova existência, que segue suas próprias convenções. Ocupo o sentido arbitrário aos meus sentidos, emoções a leis impostas, que eu sigo e quero seguir, como páginas de uma história. As escolhas se dão ao inevitável. Pressinto o amor que move o sol e as outras estrelas. Lamento empíreo. O sangue entre as notas, que as mãos destilam. O tema, esta rosa. Subo ao mais alto abandono. Não foi uma fuga para as minhas asas.
Na foto: Roberta Tostes Daniel |
Os que suportam a ternura
Ternura é rebelião de delicados
renitentes, na maneira de sorrir
pro que convém aos tolos,
segundo os dragões do pensamento
- pirotécnicos que declaram
ares farsescos da morte
teimam apagar o fogo.
Preferiam (os delicados) morrer?
Mas já morrem, morrem mediados
na solidão do gesto,
torná-la um cumprimento
- dão-se as mãos,
enfadados de socar
o próprio estômago.
*
Poemas de Roberta Tostes Daniel. Leia mais em: Sede em frente ao mar.
7 comentários:
Roberta Tostes Daniel é das poetas contemporâneas que mais admiro. Tem uma voz muito própria que se destaca pela força e delicadeza. Imaginando um manual poético à procura de versos que nos alcem, nos façam navegar, entrar em estado de contemplação, a resposta seria encontrada nos de Roberta. Poesia que há anos leio e movimenta algo muito sentimental e conflitante dentro de mim; cada entrelinha aciona um estado de entrega.
Bonitos mesmo! Beijos
a Roberta é uma voz altíssima
bela postagem Larinha
beijos
Belíssimos escritos espero que você esteja muito bem e que teu dia seja muito bom, abraços!!
Nossa... Roberta Tostes Daniel é demais mesmo!! Gosto imensamente de sua escrita.
Beijo, Larinha.
Beijo, Roberta.
Gostei de passar por aqui e conhecer. Obrigada.
Bom fim de semana.
Que prazer ser apresentada uma poeta tão sensível e encantadora.
As palavras penetraram minha alma trazendo a leveza do sentir.
Lindo demais.
Beijos
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