Poemas de José Antônio Cavalcanti
Latência
Dois minutos
duas horas
dois dias
dois anos
dois séculos
e o pulso dos teus olhos
ausentes
não se fecha
*
Eu sou um outro sempre uma nuvem à frente
Há algo comigo
que não assimilo.
Em mim
o mais distante
horizonte
rasga o umbigo
e segue adiante
indiferente
ao meu pânico,
um afluente
inverso
- rio de matéria escura-
corre em refluxo constante,
ilegível verbo evasivo
inconjugável
conjura a falência dos sentidos.
Entre pleura e pneuma
o trânsito de inessência
intratável,
um lance
sempre fora de alcance.
E se eu for
somente aquilo que me escapa?
Imagem: Jeremy Geddes |
O grande desastre antiaéreo de ontem
Ela na garupa
tremia
na chuva
(gosto de moto
como café
bem forte
na curva,
joelho
rasgando
o chão),
por isso
a letra
desestabilizava
verdades
a 120 km/h.
Os gritos
no retrovisor
não captaram
veículo
imprevisto
na contramão.
Dois capacetes
rolaram
o horizonte
no asfalto.
*
Do outro lado da cidade
observa
som, sombra de asas
na janela
um talvez pássaro
ousasse
entrada
até o jarro chinês
no canto da sala
e pousasse
na orquídea de plástico
rosa dégradé
à semelhança de loura
languidez
na almofada
de listras diagonais
rodeada de rendas
sonolência
solidão
mas são apenas sombras
aleatórias
em disfarce de pássaros
o voo continua intacto
no céu do sofá
*
José Antônio Cavalcanti - poeta, contista, ensaísta e professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Tem mestrado em Ciência da Literatura pela UFRJ sobre Cacaso e doutorado sobre a narrativa de Hilda Hilst. Escreveu os livros: “Anarquipélago” (poesia) e “Fora de forma e outros foras” (contos). Edita os blogs: Caosgraphia e Poemargens.
Hoje, lançamento do livro Anarquipélago de José Antônio Cavalcanti no Rio de Janeiro. Leia mais em Mallarmargens.
2 comentários:
José Antônio Cavalcanti é dos poetas que mais me encantam e instigam pela busca constante que evoca em seus textos. Em muitos poemas, ambienta um cotidiano repleto de elementos oníricos, o que desloca eixos e facetas. Volto aos seus textos antigos para relê-los e eles não estão mais lá, sofreram mutação, e algo me modifica e me faz explorar adiante a nova forma que encontrei. A busca não é só em profundidade, mas também nesta superfície que, por tantos acharem óbvia, dão de cara com os espelhos baços.
Muito, muito bom!! Gostei da poesia de José Antonio Cavalcanti!
Mais uma ótima escolha e apresentação, Larinha.
Parabéns a você e ao poeta!
Abraços!
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