PÁGINAS

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

"E se eu for somente aquilo que me escapa?"



Poemas de José Antônio Cavalcanti


Latência

Dois minutos
duas horas
dois dias
dois anos
dois séculos
e o pulso dos teus olhos
ausentes
não se fecha


*


Eu sou um outro sempre uma nuvem à frente

Há algo comigo
que não assimilo.
Em mim
o mais distante
horizonte
rasga o umbigo
e segue adiante
indiferente
ao meu pânico,
um afluente
inverso
- rio de matéria escura-
corre em refluxo constante,
ilegível verbo evasivo
inconjugável
conjura a falência dos sentidos.
Entre pleura e pneuma
o trânsito de inessência
intratável,
um lance
sempre fora de alcance.

E se eu for
somente aquilo que me escapa?


Imagem: Jeremy Geddes


O grande desastre antiaéreo de ontem

Ela na garupa
tremia
na chuva
(gosto de moto
como café
bem forte
na curva,
joelho 
rasgando
o chão),
por isso
a letra 
desestabilizava
verdades
a 120 km/h.

Os gritos
no retrovisor
não captaram
veículo
imprevisto
na contramão.

Dois capacetes
rolaram
o horizonte
no asfalto.


*


Do outro lado da cidade

observa
som, sombra de asas
na janela
um talvez pássaro
ousasse
entrada
até o jarro chinês
no canto da sala
e pousasse
na orquídea de plástico
rosa dégradé
à semelhança de loura
languidez
na almofada
de listras diagonais
rodeada de rendas
sonolência
solidão

mas são apenas sombras
aleatórias
em disfarce de pássaros

o voo continua intacto
no céu do sofá


*

José Antônio Cavalcanti - poeta, contista, ensaísta e professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Tem mestrado em Ciência da Literatura pela UFRJ sobre Cacaso e doutorado sobre a narrativa de Hilda Hilst. Escreveu os livros: “Anarquipélago” (poesia) e “Fora de forma e outros foras” (contos). Edita os blogs: Caosgraphia e Poemargens.

Hoje, lançamento do livro Anarquipélago de José Antônio Cavalcanti no Rio de Janeiro. Leia mais em Mallarmargens.

2 comentários:

Anônimo disse...

José Antônio Cavalcanti é dos poetas que mais me encantam e instigam pela busca constante que evoca em seus textos. Em muitos poemas, ambienta um cotidiano repleto de elementos oníricos, o que desloca eixos e facetas. Volto aos seus textos antigos para relê-los e eles não estão mais lá, sofreram mutação, e algo me modifica e me faz explorar adiante a nova forma que encontrei. A busca não é só em profundidade, mas também nesta superfície que, por tantos acharem óbvia, dão de cara com os espelhos baços.

Tania Anjos disse...

Muito, muito bom!! Gostei da poesia de José Antonio Cavalcanti!


Mais uma ótima escolha e apresentação, Larinha.


Parabéns a você e ao poeta!

Abraços!