1. REVIRANDO A TERRA
"Quem ama as substâncias
ao designá-las já as trabalha."
Gaston Bachelard
Recordo saudosamente o tempo em que a terra
me encantava: do cheiro à massa; da cor à pasta.
Pasta maciça, consistência que excita os dedos ágeis,
de uma agilidade avessa, oleiro do improvável.
E era na terra que me sentia eu mesmo,
sonhador de unhas grandes, cavador de sulcos densos,
aprimorava a potência naturalmente esculpidora em mim.
Revirando a terra nas suas múltiplas possibilidades,
via um cosmo inteiro soterrado, funcionando numa lógica invertida.
Seres curiosos e sem olhos viam por vibrações:
cada tremular era sinfonia e filmes de imagens coloridas.
QUE ESPETÁCULO VER SEM OLHOS! VER POR VIBRAÇÕES!
Revirando a terra encontrava utensílios antepassados
e antepassados - antepassados mesmo! -
Sentado na terra habitava por momentos imensuráveis
o próprio mundo decorrido, já-passado!
Refrescando a mão árdua da posição de engatinhada,
sentia a úmida resposta das profundezas da terra,
e ali, cada vez mais, era eu mesmo que me sentia.
De olhos fechados, mão na terra, corpo espalhado
como raízes e galhos de um carvalho complexo
via como os seres do antromundo:
via por vibração, por densidade, pela umidade;
e sentindo, dizia todas as suas propriedades...
Ia sabendo a origem, a composição, a perecibilidade ,
a quantidade de solvente necessário
para uma maior maleabilidade da massa.
Tudo por aprender, como por osmose, revirando a terra.
Mas como dura pouco o trabalho devaneante!
Chicoteado nas costas, acordei no susto.
Com as sementes no fardo, derrubando-as desmedidamente,
descobri a brutalidade do ser despertado!
Revirando a terra em série, completei o turno,
mas conservei dentro das unhas de roedor,
fragmentos vibratórios da lição aprendida
no contato com a mais úmida terra.
Reservei em meu leito um espaço em que guardava
(a cada novo delírio terrestre) resquícios daquela terra sonhada,
e no minúsculo baú não pude hesitar em escrever:
"Santuário das terras reviradas."
Antes de dormir, quando acordo, antes do trabalho,
antes de SAIR PARA A VIDA,
toco, cheiro e recordo que a parte que mais me pertence
de mim mesmo fora deixada ali, num internato com os
seres cegos que enxergam por vibração: e a cada dia,
em cada abertura do santuário, uma nova lição
Sobre ver por vibração é aprendida, e
posso voltar à vida da maneira como ela é.
2. Espírito em borda
Só há bordas, margens,
Cais, nada mais visível
Aos planos oculares.
Aqui, tudo cai e jaz caído
Na verticalidade imposta
Éter à barro...
Embebemo-nos de bordas,
Rebocos no vazio,
Mutirão que pinta o ar
E a arte faz vento -
Ou o vento faz arte?
Dobras no cais, onde a barca
Não se aproxima... Há que ser
Tocada por algum espírito
Intocado!
Rumores que escapam da posse,
Ainda... Escape ao lado,
Lado-a-lado das margens,
À fúria da flâmula que arde
À procura de todo espaço.
E há o que escapa: a volta,
A dobra enérgica que afasta
Toda possessão!
O litoral, termômetro morno,
Convidá-nos a sermos bordas
Menos rebuscadas
Limpas em areias.
Desmancham o ser em líquidos
Que colorem o mar:
Homens n'água!
Escorrem atormentadamente
Levadas ao ritmo brando da brisa,
Aceitando ser margem encalhada.
Se avistares a dobra intocada
Do cais inatingível, dobre-se
Reverente: aquilo que não atingimos
Exige-nos reverência.
O liame intocado
Deve ser reverenciado,
Ainda que seja um cais,
Uma margem ou uma borda.
No calor, o que mais querer,
A não ser diluir-se lascivamente
Não temendo escapar aos princípios
Que prendem o corpo?
No calor, o corpo é borda,
Margem e dobra; dele
Sobe-desce raios brilhantes:
O corpo é margem em espetáculo
De cor, quando molhado, o sol
Reflete sua glória.
A areia, embebida do
Caldo quente dos
Homens n'água,
Contém espíritos banhados
Em bordas...
E o corpo é espiritual em suas dobras
Que sobem-descem no vão
Intocado por espíritos intocados;
Corpo-cais, onde as barcas
Não conseguem tocar.
Só há bordas, margens,
Cais, nada mais visível
Aos planos oculares.
Aqui, tudo cai e jaz caído
Na verticalidade imposta
Éter à barro...
Embebemo-nos de bordas,
Rebocos no vazio,
Mutirão que pinta o ar
E a arte faz vento -
Ou o vento faz arte?
Dobras no cais, onde a barca
Não se aproxima... Há que ser
Tocada por algum espírito
Intocado!
Rumores que escapam da posse,
Ainda... Escape ao lado,
Lado-a-lado das margens,
À fúria da flâmula que arde
À procura de todo espaço.
E há o que escapa: a volta,
A dobra enérgica que afasta
Toda possessão!
O litoral, termômetro morno,
Convidá-nos a sermos bordas
Menos rebuscadas
Limpas em areias.
Desmancham o ser em líquidos
Que colorem o mar:
Homens n'água!
Escorrem atormentadamente
Levadas ao ritmo brando da brisa,
Aceitando ser margem encalhada.
Se avistares a dobra intocada
Do cais inatingível, dobre-se
Reverente: aquilo que não atingimos
Exige-nos reverência.
O liame intocado
Deve ser reverenciado,
Ainda que seja um cais,
Uma margem ou uma borda.
No calor, o que mais querer,
A não ser diluir-se lascivamente
Não temendo escapar aos princípios
Que prendem o corpo?
No calor, o corpo é borda,
Margem e dobra; dele
Sobe-desce raios brilhantes:
O corpo é margem em espetáculo
De cor, quando molhado, o sol
Reflete sua glória.
A areia, embebida do
Caldo quente dos
Homens n'água,
Contém espíritos banhados
Em bordas...
E o corpo é espiritual em suas dobras
Que sobem-descem no vão
Intocado por espíritos intocados;
Corpo-cais, onde as barcas
Não conseguem tocar.
Ailton Volpato
Um comentário:
Oi, Sandrio!
Que textos tão bonitos... Lindos!
Mergulho na terra, no mar, no ar, nas sensações, nas emoções, nas imagens, na alma...
Pena que eu tenha o dom de estragar, com muitas palavras, o que de melhor sinto quando tento dizer das coisas que me fascinam.
Não conhecia o autor. Gostei demais.
Grande abraço.
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