PÁGINAS

sábado, 21 de setembro de 2013

"O sangue entre as notas, que as mãos destilam"


Com que pedaço de memória é possível dizer tudo?

Posso tentar outra vez.
Mas a palavra hoje não me limita.
Estou em tudo e em ninguém.
Falhei. Falhei quando, juntas,
atravessamos a ilusão dos corpos,
na unidade quase possível.
O ponto máximo de realidade,
embora os sonhos queiram dizer algo:
que há um lugar aceso para o tempo
que não existe,
senão um lugar que nos pertence
na dimensão sombreada
da memória -
o que ama.
E o que ama tem a carne
dos avessos.
Não consigo tocar,
mais uma vez,
a carne da minha linguagem.
Tento; os nomes chovem
sobre meu corpo
ermo.
A palavra, manto de água,
despe serventias.
Há sempre o lado
limpo do leito
que desfere o nome
vazio.
Como um último golpe,
dois adolescentes,
o toque desesperado.
As mãos que amam,
as mãos que nunca tocaremos.
Que esbofetearam palavras de ordem
quando não fomos;
consumidos pelos anos,
atravessando o fundo.
O tempo, não mais o medo.
Com que pedaço de memória
é possível dizer tudo?
Ultrapasso a linha de chegada.
Ano após ano, de um desejo
que vai afinando como a pele.
Mas, em cada coisa escrevo
o amor: seu nome altero,
sua marca indelével,
que eu risco
neste branco
de pele.


Imagem: Sebastian Toth

  
Há uma nova contagem do tempo. A cada três e meio antigos minutos, a música recomeça. Soa como se me explicasse: o indivisível, o inimitável. Para que eu não entenda. O sol da primeira tarde. As próximas horas, cortinas a tudo. Esta solidão de pálpebras, sombras que refletem cercanias do mundo. Esperas: esferas. Tento ser o mais ágil, nos centésimos em que avanço do silêncio ao som. O fim quase inaudível. Como sempre, perco para os meus braços. Asas do incontável atraso do agora, na soma dos movimentos, das incompreensões, logo trarão o fim deste ato. Pode ser que o cansaço vença, ainda antes que o tempo se renda aos atrasos. E é só a música que tenho por parâmetro. Apenas este toque, dedos presumidos, intangível impregnado de urgências, que cobre há meia hora uma nova existência, que segue suas próprias convenções. Ocupo o sentido arbitrário aos meus sentidos, emoções a leis impostas, que eu sigo e quero seguir, como páginas de uma história. As escolhas se dão ao inevitável. Pressinto o amor que move o sol e as outras estrelas. Lamento empíreo. O sangue entre as notas, que as mãos destilam. O tema, esta rosa. Subo ao mais alto abandono. Não foi uma fuga para as minhas asas.

Na foto: Roberta Tostes Daniel

Os que suportam a ternura

Ternura é rebelião de delicados
renitentes, na maneira de sorrir
pro que convém aos tolos,
segundo os dragões do pensamento
- pirotécnicos que declaram
ares farsescos da morte
teimam apagar o fogo.

Preferiam (os delicados) morrer?
Mas já morrem, morrem mediados
na solidão do gesto,
torná-la um cumprimento
- dão-se as mãos,
enfadados de socar
o próprio estômago.


*

Poemas de Roberta Tostes Daniel. Leia mais em: Sede em frente ao mar.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Oração n. 5




Anjos, inventem a tesoura de abrir veias, palavras escorrendo como sangria desatada, o fluxo, porque sangue parado é veneno, veneno de palavras que vão cavando fundo seus lugares, suas cicatrizes-sentimentos, porque alma é corpo, corpo de sangue e palavras, na alma calada por espinhospalavras o corpo se fecha, um labirinto de arame farpado fechado sobre si mesmo, cuja saída, ilusória, é o centro, o centro onde estão adormecidasdespertas as palavras sujas de sanguebílis amarela, sanguebílis negra, a terra infértil que é um lodaçal, um paradoxo de morte e vida, vida cega tal a morte, persistente vida, palavras são organismos que se arrastam, mastigam a alma por dentro, palavras têm fome, anjos telepatas, inventem instrumentos cirúrgicos estranhos, andem com flores agarradas no coração, conheçam o sofrimento com a precisão de quem também vê o lodo de perto, o lodo da vidamorte, que as palavras sangrem, caiam no chão, o destino delas não me interessa, anjos, venham com preciosos instrumentos de observação, lupas pra vermos em escala reduzida e intensa as florações das luzes de Brasília, quando a luz bate no olho e das pálpebras brotem pétalas translúcidas-vermelhas e o silêncio multiplique encantos.

*

Poema do "Livro de Orações", de Daniel Faria. Leia mais do autor na revista Mallarmargens e no blog Língua Epistolar.