PÁGINAS

domingo, 28 de abril de 2013

Dois Poemas de Eliana Mora





Devaneios quase possíveis 


O sol derreteu-se devagar
a escorrer pela ponta de um pincel macio,
no corpo daquela manhã.


Lenta e preguiçosa,
a tarde, insegura e tonta,
perde-se em divagações em tal cenário.


Ao pintor imaginário
resta a tela e um desafio: cerzir na noite
uma nova manhã.

Sobras de gotas douradas,
novos ares, nova vida,
matéria viva

[até algo surgir da costura agonizante].




Eliana Mora, 11/4/13
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Por um instante, ainda






Por um instante, ainda


se a vida parar
se a tela do mundo escurecer
se o brilho do asteróide ainda conseguir nos alcançar
pronta estarei para tudo
que pode ser um nada
o vazio de um amor que não pode esperar


não importa o som dos pássaros
o alarido de algum nada a me chamar
estarei disposta
recosta aqui  sonho meu
abre todas as comportas
pensa que existo
com isto me leva onde quiseres 


se pensas que sou eu ainda
se reflito a cor do pensamento teu
retira-me do ponto de partida
anula-me num todo inconsequente
e pula-me a brincar de vida

porque ela é sim
a dona disso tudo


enquanto minha dor resplandecer
num tolo e mágico segundo
atira-me a ti 

[que - juro - não resistirei]


Eliana Mora, 30/3/13  


Eliana Mora - Lírio deserto 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Dois poemas de Thiago Cervan




espinha de bacalhau

retirar a flanela laranja 
do corpo fragmentado de madeira
unir campânula, corpos superior & inferior
barrilete & boquiha no adágio, molto tranquilo
umedecer a palheta com a língua ágil
do stacatto & prendê-la com a borboleta prateada. 
& com o pulmão de mil fumantes crônicos
& com os dedos atrofiados pela poeira
dos fechos enferrujados da maleta
reviver com pouco brilho
o clarinete de anos atrás



*


anhangabaú

camelôs vendem dvds pornôs
enquanto travestis de um metro e noventa
& pirocas de trinta centímetros exibem-se com
o mesmo rigor dos soldados da guarda-real
britânica. god save the queen. vende-se tudo:
milho transgênico no pratinho da china,
guarda-chuvas de meteoritos e erva cidreira
de plástico & em um canto qualquer seres
amontoados tem os dorsos cobertos por caixas
de papelão com impressões metalinguísticas: frágil,
manusear com cuidado, made in brazil.
vômitos de anjos & pedrinhas q não estão no
aquário compõem o cenário da maldição da
película q não entrará para a lista dos filmes de
terror mais importantes da última década.
vagabundos em geral levam a vida como dá,
entre um biscate & uma biscate, uma boate
e um bote certeiro & os estagiários & executivos
& todos os tipos possíveis rumam às catracas
numa fila indiana do carrossel infinito q se segue
sobre o vale da sombra dos autóctones nus


*


Thiago Cervan (1985) nasceu em São Bernado/SP. Desenvolve diversos trabalhos em arte e poesia. Em 2012, publicou o livro "Sumo Bagaço", pelo selo Poesia Maloqueirista. Saiba mais sobre o autor em: http://cervan.blogspot.com.br/.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Poema de Ney Ferraz Paiva



"o dia todo com os olhos voltados pra fronteira" 


marinheiro de segunda classe
sem rosto nem pertences
sempre mudando pra mais longe
efeitos de introversão
filiado ao sindicato dos marítimos
ainda que por lá já não militem marujos tão bons
billy budd/ paul bowles/ basil bunting
agonizando sobre a praia
digo oh deuses guardiões dos mares
quero mais tempo pra ler/escrever
flutuar no éter das distâncias
algures & aqui nesta deriva
palavras arremessando entrando
ou és tu que impeles/solidão?
resgatam antigas pegadas
incontáveis tropeços
furiosa música do dia
estranho lugar da escrita
tentar fingir pra si mesmo
um caminho de fuga
depois da brumosa chuva
a cidade se contempla pelo avesso
um caos de detritos
ruína de navio ao largo
um tipo de luto
cidade oculta na sucessão de ruas
corredores fechadas janelas
estreitos desfiladeiros
não existe mais
nada me sobrou
pelos becos corriam cavalos
terrenos baldios
cemitérios de cães carros 
velhos ossos até avião tinha
construíram aeroporto perto dali
que às vezes se foge
nomadismo & vagabundagem
tempo em que não existia rua avenida
dizia-se: “estrada velha do aeroporto”
torpor de hélices arremetendo
nasci-cresci ali agora mesmo
tudo leva o tempo de um segredo
passou-passei inerte sobre escombros
esmagado perdido acuado
à espera-ébria do hipotético barco
evito ver-lhe um retrato
esquivo-me de seus enigmas
eu era essa cidade derruída
na avenida agora descarrega-se
o delírio que não teria ousado
desenfreadas procissões
pastoreiam pés descalços
o pecado a que sempre se volta
engastados numa corda
sem saúde nem saída
estrangeiro agonizo sobre a praia
oh deuses guardiões dos mares
distâncias engolem/regurgitam
flamejam o confim dos exílios
escritor de leitor & lugar algum
todos passam surdos/mudos por mim
a coisa mais estranha é o silêncio
ou certa vez tua mão na estante
à procura de um livro meu
“não é fácil achar”
um livro entre outros
sem início & fim solenes
dedos percorriam dorsos crinas
cabelos brancos-açucarados
bailavam saiam de mim            
puxavas manobravas
raízes de água fluente
criadas por mim mesmo
começavam a cobrir tudo
o silêncio-uivo do poema

*


Ney Ferraz Paiva nasceu em Belém (Pará). Escreveu os livros: "não era suicídio sobre a relva" (2000), "nave do nada" (2004), "val-de-cães" (2008) e "arrastar um landau debaixo d'água" (2012). Mantém o blog Hospício Moinho dos Ventos.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

DOIS POEMAS DE NUNO JÚDICE


I
A ORIGEM DO MUNDO

De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com
a névoa da madrugada. O mundo, então,

fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo da terra; e as raízes sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez,
para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.


II
POEMA DE AMOR PARA USO TÓPICO

Quero-te, como se fosses
a presa indiferente, a mais obscura
das amantes. Quero o teu rosto
de brancos cansaços, as tuas mãos
que hesitam, cada uma das palavras
que sem querer me deste. Quero
que me lembres e esqueças como eu
te lembro e esqueço: num fundo
a preto e branco, despida como
a neve matinal se despe da noite,
fria, luminosa,
voz incerta de rosa.


Nuno Júdice (1949), poeta português. (www.citador.pt/poemas/jogo-nuno-judice)