PÁGINAS

sábado, 29 de junho de 2013

Vivendo Marc Chagall






Nada mais natural
que esse casal flutuante.
As asas do amor nunca são vistas.

Enquanto os peixes cruzam
as águas de seus rios
e o violinista incorpora a ave colorida,
vem uma folha de papel do alto da ponte.
Logo o amado atende
e eles conhecem o toque
para o qual nasceram.

Aves e músicos
reses e cortejos
atendem ao violino do homem solitário.
O mundo se explica enfim
do modo inexplicável dos amantes
e a pomba libertada
colore o céu
e as cidades em seu voo.




Vigília

 

 

O que resta de mim no fim do dia
são desenhos a têmpera
a construção desfeita
e a que renasce no mundo escuro.

O tépido e o lembrado
em traços diluídos de uma tinta
extraída do mar.

Linha desfeita em águas de vigília
na superfície do quarto
campo e guerra.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

"apalpar a noite é um começo de escrita"




Um terror de cães com a rua dobrada (o vento a arder uma representação violenta da passagem), recado posto em meio à brancura da geladeira, lembro dum grito colorido de
sirene: apalpar a noite é um começo de escrita, falávamos disso, os nossos labirintos,

e dissolvendo o açúcar
de cada angústia no nosso demônio bêbado: transávamos o desejo se inventando, as infâncias comedoras de éter. Periferias,

tiro, bala, bilhetes como corpos transpirantes para drogar os olhos, e após as linhas, no fundo sanguíneo de paredes úmidas.

Redigidos à mão nervosa, solucionaram encontros sob uma janela de fundos falsos. Olha lá fora, na esquina dos versos envelhecidos,
onde marcham são já os que não deveriam passar, temperados pela escuridão (sobre eles, idealistas conjecturarão a maldade), repara que

tremeluz em cada a feição própria do
abismo.

(Deve recordar que chorei, derradeiro, o hino socialista que cantou seu sorriso.)

*


Poema de Viktor Schuldtt. Leia mais do autor em: http://desterritoriosilencios.blogspot.com.br

sábado, 22 de junho de 2013

As primeiras dores

Prosa de Kleber Lima


Estou batendo minha cabeça contra a parede.
O sangue já deve ter tomado boa parte do rosto, descido pelos ombros e arruinado toda a estampa da camisa. Adquiri este hábito horrível. Acontece que todas as vezes que o faço, é justamente isso que busco: abrir minha cabeça, deixar que algo lá dentro escape, se derrame.
Na maioria das vezes, é claro, a cabeça bate forte demais. Aí, as escoriações à mostra logo denunciam alguma involuntária desatenção, pois ninguém acreditaria que você chocou deliberadamente a cabeça tentando, com algum desespero, esquecer algo, apagar uma imagem, reorganizar sobre o areal da mente os frágeis montantes de areia que se formam por algum ocaso e que ficam espalhados ilogicamente. Afinal, e isso é bem sabido, às vezes não se quer pensar em muita coisa, mas como entupidos os habituais corredores de onde surgem essas imagens, você não pode escoá-las. O pior não é isso. O pior é que elas atraem associações irracionais e perigosas. Cruzam-se, criam pontes entre si, à revelia mesmo da minha sanidade, e fazem-me pisar em paisagens rarefeitas, de figuras inumanas, onde tudo se desfigura e onde os seres se comunicam através de peripécias silenciosas.
Fico com esse trânsito na cabeça, congestionado. Minha mãe é a que mais se preocupa, naturalmente. Minha sorte é que a porta do quarto tem chave, assim me tranco e permaneço o tempo que for preciso, lançando sorte de toda minha habilidade de me camuflar quando tenho que ir até outro cômodo da casa, até o inchaço diminuir ou desaparecer.
Acontece que já não suporto isto. Desta vez bati forte a cabeça, forte demais. Imediatamente fiquei tonto. Tudo ao redor se tornou uma grande vertigem. Contudo, enfim, sinto um alívio. Sabe aquele momento em que você sente as ideias fluírem? Que lucidez há neste fechar de olhos!

*


Kleber Lima é bibliotecário e reside em Fortaleza - CE.
Leia mais do autor na revista Mallarmargens.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

A Poética Profunda de Sant Anna

(Fotografia: Cris de Souza)


Suíte para uma pisciana numa indisfarçável  baía

I
Acalenta, sim. 
Acalenta. 

Quando disfarço, 
é para dizer o contrário 
como se 
me arrancassem a língua, 

mas qualquer outra coisa 
que o diga 
poderia atrapalhar 
a separação do joio do trigo, 

e não seria para menos 
se o tanto  que te falei 
ou o tanto que te pedi 
não fizesse o vento 
tão peremptório 
atrapalhando 
a conjunção das borboletas. 

Mas estamos quites. 


II
As sereias  
nunca negaram a entranha 
que não ostentam. 

Despi-las,
sempre foi 
um estranhamento. 

Sempre foi  um nexo absurdo 
no mundo oblíquo dessas sacerdotisas. 


III
Além de ti, 
a última sentença que prolato, 
entretanto,  é minha discreta mão 
singrando o vento fosco 
e morrendo infinda  no limite 
da sua baía.

(José Carlos Sant Anna)

* O autor escreve AQUI.