PÁGINAS

sexta-feira, 24 de maio de 2013

"o silêncio costurado com barbante"


Imagem: Mercedes Lorenzo


anotações sobre a cidade alheia

os telhados falam do que não conhecemos, eles falam a lín­gua dos musgos, da tinta seca, das telhas velhas: pegadas­-perdidas-de-elefante. as paredes se escoram na flacidez do tempo, preguiçosas e pacientes, acordadas pelo som coleti­vo das matracas e o movimento das ancas dos cazumbás. a obesidade da cidade é um fato; suas estrias vazam – e nelas andamos. pequenas estações em cada fiapo de cimento ou planta, sombra do que se move e não pode ser segura, presa, pisada. a cavidade lasciva da brisa se faz caminho: sessão de filmes-sonhos no horário das pálpebras fechadas: – não que­ro que os galos me avisem que está amanhecendo.

Imagem: Mercedes Lorenzo


alguém comeu minhas mortes

minha boca suja de sono no teu sonho sujo desata novelos e subtrai gengivas: gosto de deserto em prato de cerâmica, lín­gua escorregando pela geometria defasada. arapuca armada: impossível resistir ao ato de se abismar. a janela cega revela nódoas, sequelas atrás dos tijolos. o silêncio costurado com barbante faz lembrar que as raízes cortadas fazem falta: – onde furtaram meu quase nada há um incêndio infinito e asas longe do tronco.

*

Poemas de Demetrios Galvão do livro Insólito, disponibilizado na íntegra em: http://www.corsario.art.br//index.php/corsario/editora


Imagens de Mercedes Lorenzo, retiradas do site:
http://www.mercedeslorenzo.com/index.html

terça-feira, 21 de maio de 2013

TRÊS POEMAS DE JOÃO MANUEL SIMÕES


PENÉLOPE

Enquanto a noite cresce e a lua brilha,
faço e desfaço, sem descanso, a teia,
no tear infinito da quimera.
Ulisses há de vir da sua ilha.
Mas enquanto não vem, minha odisseia
é ir tecendo, em pranto, a longa espera.


SANCTA POESIS

Luz que se tece
de sombra
e claridade.
Sua textura,
só quem a acende
sabe.
 
Flor no silêncio.
Seu colorido,
só quem a colhe
enxerga.

Explosão irisada
de metáforas.
O seu fascínio,
só quem a deflagra
entende.


Cruz implacável sobre cujos braços
me prego, sangro, morro
e ressuscito
para a vida efêmera.

 DIÁLOGO COMIGO

Falo comigo, falo.
Mas só me escuto quando,
em silêncio pensando,
me calo.

O que diz minha boca?
Mentira vã, sonora?
Tudo o que digo agora,
sufoca.

Ânsia íntima, larga,
de seguir só e mudo.
Tudo o que conto, tudo
amarga.

Minha voz de ontem brota
de um legendário hoje.
Subitamente foge,
ignota.

Quem serei? Desconheço.
Se chegar a sabê-lo,
a ninguém o revelo:
esqueço.

(João Manuel Simões, poeta e contista, nasceu em Portugal e vive em Curitiba/PR).

 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Adriana Godoy


quando vim ontem pela rua

quando vim ontem pela rua vi um cachorro morto. fiquei olhando para ele imaginando como teria sido a sua vida de cachorro. então lembrei da minha vida e vi que não era muito diferente. me vi morta com a cabeça no passeio e o resto do corpo na rua. imaginei outro cachorro me cheirando com o focinho frio e o bafo quente. vi que ele saiu correndo, como quem corre do diabo. 
 
Arte: Rafael Godoy

feridas custam a secar

tenho em mim o resto de meus dias
e não sei de que são feitos
sei que horas são quando me chamam pra almoçar
ou qualquer outra besteira cotidiana
a não ser quando incendeia a lua
me importo menos com as coisas que me atormentavam tanto
e desisto de pular a janela
vou acumulando sorrisos e caretas
 feridas custam a secar
lobos passam silenciosos e com medo
percebo só as suas sombras
e isso me basta
um drink, amor?
para celebrar o vazio
o que importa
se os degraus são altos e não posso alcançá-los?
enojam-me as tragédias humanas
e sou uma delas
 
Arte: Rafael Godoy

então ele disse que era deus

então ele disse que era deus
já que a partícula de deus era ele
eu disse que também era
mas quando percebi estava conversando com o diabo
que também era a partícula de deus
e pensei em pulgas e carrapatos
nas baratas e camaleões
nos rios e oceanos e nas águas de chuva
e pensei como um vírus que é também partícula de deus mata
e pensei nos homens que matam e são cruéis
e nessa humanidade quase perdida
me lembrei das melhores músicas
dos melhores filmes livros e da poesia
pensei nos amigos nos filhos
na mãe no pai na lua de ontem
e vi que o dia era azul um dia de inverno azul
e os gatos estavam ali no sol
e vi que nada vai fazer diferença
o dia segue bonito ou desesperado
e vou pra janela fumar um pedaço de deus ou do diabo

*

Leia mais de Adriana Godoy em seu blog "Voz".