PÁGINAS

quarta-feira, 27 de março de 2013

Abertura sob pele de ovelha
























Falso Profeta, insone, Extraviado,
Vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila - inevitável,
meu Sangue traça a rota desse Fado.

Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a pulsação do Ser, fera indomável,
arde ao Sol do meu Pasto - incendiado.

Por sobre a Dor, Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.

Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.


Poema de Ariano Suassuna  (1990)


quinta-feira, 7 de março de 2013

ABAIXO DA LINHA DE POBREZA


Zulmira Ribeiro Tavares (1930), poetisa paulistana.
 
Ora vejo a linha de pobreza no contorno irregular
dos prédios, altos, baixos, ou das pequenas casas de
autoconstrução na encosta dos morros.

A linha que mais me atinge é a reta, que vai de
um ponto a outro sem desvio. Sei que nela há
números. Quais, não sei. Ainda que não tenha cor,
peso, e tangencie o invisível, é forte. Li a propósito.

Considero a linha do horizonte a que mais se
aproxima do que imagino ser a linha de pobreza.
Da cidade, ver o horizonte é difícil, ou se apresenta
com defeito. Rememoro-o distante, no fim do mar.
Deve ser de lá que a retiram, a linha de pobreza,
com régua e compasso: para raciocínio e ação.
Pois impossível que não exista primeiro na paisagem,
material, resistente. Tem de existir, como certas
fibras arrancadas à natureza para com elas se fazer
feixes, relhos, assim como servem de enfeite as
penas de belas aves.

Verdade que ao longo da vida passaram-me diante
dos olhos gráficos estampados em folhas de
jornal. Alguns diziam respeito à linha de pobreza.
Neles, seu traçado não remetia ao limite que se
tem do mar, longe, e por vezes mesmo delineou
o contorno de ondas crespas e próximas ou, além,
de escarpas, promontórios. Puras formas da
física terrestre, impetuosas, dramáticas, tocando
o interior dos homens de modo diverso ao da
linha do horizonte - que os acalenta com o sono,
a tranquilidade ou a morte.

Abaixo da linha de pobreza não me chegam ideias.

 

 

sábado, 2 de março de 2013

Carlos Quiroga



oração

E depois pensar em ti
perder-me devagar no meio dum jardim botânico sem ter calculado
sem prévia busca de tempo ou rota no plano
como um náufrago no oceano de luz da manhã
pensando como seria bom perdermo-nos a dois

E antes a Travessa-do-Fala-Só
como um sorriso calmo subindo para o Bairro Alto
subindo a vista sobre o mar
o mar entrando grande no Tejo em que se confunde
do modo como eu gostaria de confundir-me em ti

E agora a estonteante febre
da beleza das plantas e dos teus olhos ausentes
no trânsito do cérebro para o coração
e como te rogo sem te ter tido
nestas palavras que te rezam




nada

Transitei as horas do dia como um tonto
premeditando o gesto transcendente que me havia de salvar
mas as horas passavam
e eu percebia a sua inutilidade em cada cigarro

Ao menos na estação existem comboios
e das horas tediosas no cais
sempre se é uma vítima inocente

Transitei a culpa conscientemente, sem valor para suicídios
como uma véspera de nada, lembrando
o cheiro a linimento das tardes de domingo, tão inúteis também
como esses passatempos que inventam
para homens cansados de viver

Talvez ainda sem caminhos de ferro chegue um comboio
e eu sinta na pele a alegria da inocência...




neurona

Lembro que antes lembrava um rosto
do qual não lembrava o nome

Agora nem o rosto lembro
e em breve nem lembrarei que lembrava

 do livro: G.O.N.G.- mais de vinte poemas globais e um prefácio esperançado (1999) 





Carlos Quiroga,(Escairom -Terra de Lemos-, 1961])

Atualmente é escritor e professor de literaturas lusófonas na Universidade de Santiago de Compostela, membro da direcçom da Associaçom de Escritores em Língua Galega, membro da Associaçom Galega da Língua (AGAL) e ex-diretor da revista Agália.

Publicou G.O.N.G. -mais de vinte poemas globais e um prefácio esperançado (1999), Periferias (1999, Prémio Carvalho Calero de narrativa, publicado em Brasil em 2006), A Espera Crepuscular (2002, primeira parte da trilogia Viagem ao Cabo Nom), Il Castello nello Stagno di Antela - O Castelo da Lagoa de Antela (2004, Prémio de Teatro infantil na Mostra de Ferrol-Terra em 1988, publicado na Itália em galego e italiano), O Regresso a Arder (2005, terceira parte de Viagem ao Cabo Nom), Inxalá (2006, Prémio Carvalho Calero de narrativa), Venezianas (2007). Fundou e dirigiu a revista galega O mono da tinta.

Bolseiro de investigaçom da Fundaçom Calouste Gulbenkian (1991-92), do atual Instituo Camões (1992-93), e da Universittà Italiana per Stranieri (1983), foi prémio extraordinário de doutorado, professor de Língua e Literatura Galegas, e o primeiro professor de Português em E.O.I. na Galiza, antes de trabalhar na universidade

Fonte:O presencialismo galego - PORTAL GALEGO DA LÍNGUA