PÁGINAS

domingo, 15 de junho de 2014

"pisamos a terra calcinada e nossos ossos"



água puída
 
somos cinco sob a árvore. alguns passantes vêem um sobrado, outros um forte, mas se trata de uma árvore secular. há ernesto, que nos atravessa com seu pavor no instante da partida, enquanto nós estamos cercados pela espera de sua volta. a contar por nosso calendário, ernesto só viverá novamente quando se cumprir mais uma quina de anos. a esse tempo, pisamos a terra calcinada e nossos ossos, junto às sementes, formam um nó cego no corpo. nada pode faltar a ernesto, como a nenhum filho. não podemos revelar que achamos esse princípio de igualdade injusto. nossa mãe, com hera nas mãos, sussurra que injustiça é a privação de ernesto. privação de nos ver sem ser visto, de nos tocar sem ser tocado, de ser o único a ouvir a própria voz ecoar terra afora chamando por nós. quanto oceano, mãe, ainda nos vestirá até o pescoço? nossa mãe diz, na hora da prece, que, por nossos passos, ernesto sentirá que há chão; por nossos olhos, verá o longe — para que ele não seja, noite e dia, o dia afogado em seus pés que não viram o rio sem fundo. ernesto é a última criança que correu para o rio. a nós restaram a água puída e o seu aquário.


Imagem: Ben Zank

00:00h

descobri que sei guardar segredo.
a água inunda os batimentos cardíacos.
o olhar se esvai em cobre, potássio, cobalto
— diminuto calendário das dores que, na descida, não é tempo,
é brisa de água.
a crosta de tudo que desdiz meu nome me reveste com um corpo
mais sonoro: eco de nenhum cão.
sorvo-me — farpas, vidros, o pântano da primavera em meus pulmões secos.

sei guardar segredos que matam.


*

Textos de Luciana Marinho. Leia mais em seu blog Máquina Lírica.