PÁGINAS

sexta-feira, 7 de junho de 2013

"a alma em regozijo, diluída em morfina"




Thousand yard stare
Gedenkt unserer
Mit Nachsicht.
Bertold Brecht

O ouro que reveste o berço
escapa ao olho do televisor,
sem ter visto
as ruínas de toda Europa em trincheiras gangrenosas,
de algum modo vencendo a neve
pisoteada por coturnos
(que a visão panorâmica da história
redime).
Dor que passa e nada ensina,
                                      além
de qualquer morteiro ou redenção,
e o gozo de escolher
de que lado do arame farpado ser
fuzilado.



Canção do eremita

Quatro dias sem sair de casa
e o que perdi?
Carros, crânios
moídos nas madrugadas,
balões esvoaçantes
e meia dúzia de buquês
jogados no lixo

cão que foge, brinquedo que a rua
destrói
como um relógio, sem
que as horas cessem
suas transformações.
O cortejo
da vida como quem sai pra jantar
com uma pessoa estonteante
e burra.

Capa: Leonardo Mathias


Paz de espírito

Ser sábio ou tolo demais
para correr descalço sobre a
             relva reluzente
de cacos de vidro ao sol.

Transeuntes abatidos
por meteoros de ar-condicionado
e peças de titânio em chamas,
um passo na rua, outro
no eterno,
a alma em regozijo,
diluída em morfina.



Esperando estar enganado

Cadáver adiado que procria
       F. Pessoa

De cócoras à cova e um parto difícil,
abaixo
             ao fosso, o fórceps
na mão do coveiro,
e o tempo
para envelhecermos
embotados pelo hábito.

*

Adriano Scandolara (Curitiba, 1988) é poeta e tradutor. Os poemas acima são do seu livro Lira de Lixo, Editora Patuá, 2013. O autor contribui para o blog Escamandro - poesia, tradução e crítica. 

5 comentários:

Anônimo disse...

Identificação imediata com os poemas de Adriano Scandolara. Uma lira, de fato, incomum, cortante, e sem remediações. Uma poesia que sai do óbvio, mas mantendo sua matéria sensível, e um remoer no vazio, para mim, essencial na leitura de poesia. Indico demais o livro Lira de Lixo, que está em hiperlink no post acima.

Tania Anjos disse...

Muito bom, Lara!

António Eduardo Lico disse...

Bela sequência de poesias.

José Carlos Sant Anna disse...

É isso, Lara. O cara é fera, mas não morde, e de sobra faz uma poesia que fere...
Abr.,

lula eurico disse...

Dorida, aguda, inquietante poesia...